segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Pedaços

Rompimentos. Cortes. Cisões. Partes inteiras da gente que se vão. Membros estruturais que se dissolvem e ficam pelo que caminho, que caem em bueiros, que esvaziam desesperos. Pontos da minha pele, da minha alma, do meu mundo. Recortados e jogados ao vento, despedaçados numa maré infinda. Que praia farta de membros. Quais me eram confortáveis? Quais já me veem de longe? Aqui nos leitos, é sobre encaixes e desencaixes. É sobre construção de novos castelos. 

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Tiro

Como é que pode caber tanto amor num punhado de músculo? Como que pode transbordar tanto assim? Meu peito pula pra fora às vezes. Se joga no meio da pista. E eu escorro pra todos os lados. Vibrando. Amando. Me esvaindo pra todos os cantos. 

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Dezembro

Chorei em ônibus diferentes num mesmo dia. Dia quinze desse mês abrasante. Poderia colocar a culpa na playlist do momento, mas nunca chorei com Beatles na vida. Sem abrir nem um pouco a mão de clichês, é um mês em que sinto magia no ar, sinto calor (obviamente) e a iluminação natural das coisas parece reverberar de forma diferente. A luz da primavera talvez? Cores fortes? Não saberia explicar em páginas e páginas de texto, mas presumo que seja algo construído na infância, junto à árvore de natal da minha avó e ao ar de sagrado que ela dava a tudo relacionado a isso. Chorei no ônibus porque estava triste de saudade, apesar de todos os elogios que, pessoalmente, gosto de tecer a Dezembro. E também porque acho que a transitoriedade de tudo se engrandece ao fim do ano; minha mãe não mais faz rabanadas e minha avó não consegue montar uma árvore de natal - nem mesmo se fosse com minha ajuda para enfeitar, como costumava ser. Esses são só detalhes, claro. E isso aqui não é de forma alguma a dramatização da minha condição presente; mas fruto de resgates de pormenores que me fizeram chorar disfarçadamente com a cabeça apoiada àquela janela inquieta do fundão esquerdo. Resgate de belezas que não me vestem mais, que giraram, que voaram, que desapareceram... Mas que revitalizam-se em cheiros e imagens, preenchem espaços na memória e vibram no peito. Vibram sem afinar minhas cordas antes. Hoje, por sinal, vibravam bem mais do que as paredes do ônibus.

domingo, 19 de novembro de 2023

Boas festas

Vim repetir palavras sobre a repetição de tudo. O compasso do coração que reclama dos mesmos erros e das mesmas questões. A cabeça que encontra o travesseiro e rola de um lado para o outro rebobinando e reassistindo filmes - dizem que nunca é a mesma experiência, então espero que a reelaboração esteja de fato acontecendo. O verão atropelou a primavera e voltou junto às reclamações. Junto às baratas, aos mosquitos e às mortes por negligência. Águas batendo nas canelas dos desesperados, fornalhas açoitando os sem energia elétrica. O papai noel de cada loja deu as caras de novo, a árvore de natal colocou uma roupa nova e a Black Friday tá mais atrativa do que nunca mais uma vez, tá imperdível novamente, tá de graça, tá pela hora da vida.

E se as comidas do vinte e cinco fossem diferentes esse ano? E se as praias permanecessem limpas no trinta e um? A cor será branca invariavelmente, tal qual não varia o perrengue de quem toma o metrô e peita a odisseia de iniciar o ano na orla mais famosa do mundo. Que glamour. Minha hipocrisia de pensar o diferente e fazer o mesmo segue sendo a mesma também. Vou seguir me entupindo de rabanada e salpicão. Vou beber vinho mesmo sentindo calor. Vou acompanhar certa melancolia que certas datas trazem em algum momento e beber mais do que deveria. Olha o panetone, a polêmica da uva-passa, o parente desagradável, o décimo terceiro, o shopping lotado, a casa acessa, a rua quente, as roupas recém compradas. Olha a desgraça. Olha a esperança. Olha a gente se abraçando de novo. Feliz Natal. Feliz Ano Novo.

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Escalada

Me lanço escada a cima
Tateando gozos
Mendigando êxtases 
Me lambuzo todo

De degrau em degrau
Uma cerveja
Um pau

Meia hora embaixo da coberta
Seis dentro de uma festa
A acompanhar o açúcar
Que sempre me interessa

Maratono lances inteiros 
Subo aos desesperos
E despenco no vazio
Do engodo 
Das sedes
Do peito






quinta-feira, 27 de julho de 2023

Caça

Me faço sempre acordado
Quando a noite não basta.

Suplico calado
Por explosão qualquer 
Que me adentre ao peito
Que derrube esta casa.

Penso absurdos em prol do vento
Do giro, do voo
Do furacão da mudança.

Que esta noite jamais amanheça 
Ou que amanheça ainda criança.

Que venha então a madrugada sublime
Ou por capricho, que me devore nefasta.

Me farei assim
Sempre acordado
Enquanto a noite não basta.

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Retorno

Alçar-me em alturas
E vez ou outra 
Certificar 
Que ainda dá pé.

Precipitar-me em funduras
Sem cegar a vista
À clareza
De cima e afora.

Não me deixar ir embora
E recolher com mãos afáveis
Estilhaços de mim 
Que explodiram outrora.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Dia certo

 Às vezes, desejo nada além do dia claro e simples; do dia certo, que só me exige aquilo que devo. E que dessa exigência não brote nada além de serena complacência, que os ruídos dos ares da rotina não sejam extensos e que meu coração não palpite passado ou futuro. Difícil, eu sei, levantar sem pestanejar, curtir aquela viagem de ônibus, fazer a própria comida com gosto, estudar regozijando-se do conhecimento, nem ver a hora passar no trabalho, voltar pra casa satisfeito por dentro. Bater na cama e pensar: o dia foi bom. Bater na cama e pensar: eu fiz bem ao dia.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

PC

 Quando digo que sofro de ansiedade, não quero dizer que um nervosismo súbito faz companhia ao meu corpo vez ou outra. Quando digo que sofro de ansiedade, quero dizer que sofro de ansiedade. Sem o perdão da palavra; sofro. Sinto uma ardência congelante de dentro pra fora que parece corroer a camada mais profunda da pele, parece ser um frio que emana do coração e do estômago ao mesmo tempo. Dois icebergs pulsando a todo vapor e disparando lanças pontiagudas através de artérias exaustas, neurônios workaholic.

Respiração diafragmática então. Inspiro e expiro dez vezes, vinte, cinquenta. Me jogo sob a água quente do chuveiro e cerro os olhos no escuro, na tentativa de proteger o corpo do mais ínfimo estímulo externo. Deito e tento ouvir o coração, mudo de posição, entrego o corpo voluntariamente, e cada vez mais, ao colchão e, no entanto, coço a perna, mudo o travesseiro, penso naquilo, naquele, nele, nele, na fala, na intenção, em mim, no amanhã, no aniversário, na agenda, em 2026. Lanças e mais lanças impiedosamente ligeiras me atingem em cheio e, em vez de derrubar, me levantam, ando ardente pela casa, vou olhar o céu pela janela da sala, me sento a escrever, destroço a geladeira. Respiro fundo como se tivesse gosto o ar, como se fosse remédio, como se fosse acabar.

Uma ou três horas depois, cabeça na fronha novamente. O pensamento é o tolo de sempre: sou eu que mando no meu corpo, na minha mente. E repito o esforço ao não esforço mental eloquente. Nesses dias, geralmente, é o cérebro que vence - exaurido pela espera de um dono incapaz de colocá-lo pra dormir, sai por onde não vejo, sorrateiramente, e pressiona o Desligar. Saldo primeiro do dia: seu computador não foi encerrado corretamente.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Feijão com arroz

 Repara que a vida é também um linear de coisas supostamente desinteressantes que preenchem o cerne das grandes realizações, das loucuras, das tragédias e das glórias? Antes da Sexta, a Quarta-feira; antes do acidente, a seta ligada pra esquerda, uma das mãos jogada despretensiosamente sobre o volante. Um rodízio de sushi com drinks num Sábado barulhento, e o feijão com arroz de um dia estressante. E a louça na pia, o cachorro latindo, o vendedor de vassouras gritando, portas batendo, pessoas falando. O nada em tudo e a todo instante. A sonoridade fragmentária que dá voz às ruas, as formas da lua, um sol que nunca entristece. Um fazer orgânico, os pulmões incansáveis da engenhosa engrenagem dos dias simples; barulho de cebola dourando na panela, o cheiro que vai até o banheiro, perde-se o isqueiro, queima-se o chuveiro. O ônibus demora, o motorista cancela a corrida, divide um pix com tua amiga, acorda no meio da noite e se senta de olhos entreabertos na privada. A casa calada, cortinas em valsa, desamarrota tua calça e sai a trabalhar. Esquece o carregador do celular. Ajeita as alças da mochila. Sem querer, cochila - até que a montanha-russa se depare com a descida.

sexta-feira, 31 de março de 2023

Caligrafia

Me perdi por umas linhas dessa escrita que não tem volta. Me peguei preso num parágrafo inicial quando todos pareciam já estar caminhando para um desenvolvimento conclusivo. Disponho as palavras ao longo do misterioso quadro negro que me foi dado de presente, com giz permanente - não usufruo do luxo de poder voltar atrás, de desfazer, de apagar. Mas ainda posso sublinhar, acrescentar umas vírgulas no verso acima, reler a estrofe anterior, contornar umas letras, fazer de um P, um B. Me esforço para desenhar cada letra sinuosamente, com a cautela de quem gostou demais do presente, mas que, não raro, rasga o pacote em vez de desatar o laço. Pois é, a letra de professor sede lugar a um garrancho de médico em algumas passagens. E os fins nem sempre justificam os meios nesse caso; a ilegibilidade dessas prescrições podem causar um mal ferrenho à saúde. Saúde essa que, verso após verso, tenho dado mais valor, porque me conheço melhor agora, escrevo-leio minha história, e é ela mesma que me ensina como continuar a contá-la. Já aprendi que páginas em branco, algum dia, deixam de surgir... E a não ser que quebremos o quadro ou joguemos o caderno fora, o que nos une é exatamente isso, a única opção que temos enquanto seres que respiram e querem respirar: escrever.


sábado, 25 de março de 2023

Moeda

 O que assisto daqui, de meu claustro um tanto quanto abafado e de paredes cruas, é o que a mente me conta. E que por vezes sussurra ou berra; não há horário apropriado para uma coisa ou outra. Sussurros ao escrever um texto ou me concentrar numa leitura. Berros ao tentar pegar no sono ou ouvir música alta. Meus ecos me fazem companhia e me levam a revisitar festas, trilhas, risadas e cachoeiras; casas de amigos, ruas cheias, sol na pele e vento na cara. E mesmo estes, ecos vibrantes e outrora clementes, me empurram aos possíveis obscurantismos de um devir latente. Me enfiam dúvidas e medos goela a baixo e me mostram o outro lado da moeda da vida. As contas e o supermercado, a louça que se retroalimenta na pia, meu pai doente, a tomografia. Pessoas passando fome na porta da padaria. E seguimos tentando... Assim: no cara-coroa de todo dia.


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Vazão

Chóro
De muita beleza
De tanta beleza
Tamanha beleza
Que o mundo abarca

Chóro do rebuliço
Que vem de dentro
Do desalento
E da desgraça

Chóro por crianças
E por velhos 
Que têm da vida
Tão pouca graça

Chóro
Pela minha mãe já ida
Minha avó recolhida
E uns amigos de taça

Chóro pelo choro
Que só pelo choro
Às vezes
A angústia passa




sábado, 21 de janeiro de 2023

Piscina

 Mergulho no desejo com o primor que um nadador profissional perfura a água estática da piscina. Nas águas quentes me banho afoito, porém sem pressa de chegar a lugar algum. De gole em gole me percebo vivo ou morto, bem ou mal, cantando ou chorando. Chego no fundo, me debato, tomo prazeres como meta do campeonato, mas sufoco nos exageros de mim mesmo. Então pego impulso, me lanço nuns ares menos densos como peixe que brinca de viver bem - entendo a necessidade de um oxigênio sem gozo, sem lascívia, sem luxúria, sem ebriedade. Mas logo decaio à frieza das águas que outrora foram abrasantes. Petrifico. Congelo. Procuro as bordas com pressa de banho frio de inverno; minha cabeça emerge da piscina e a boca se abre gorda a sugar os ares límpidos de uma boa noite de sono, de uma alimentação balanceada e de uma rotina que me dá orgulho. Dias depois, no entanto, sinto a mornidão do vapor das águas me beijar a pele suavemente e não me demoro a, dessa vez, utilizar as escadas pra ir em direção ao meu submundo favorito. Com o gelo quebrado e brasas fora de vista, me banho confortavelmente em temperatura ambiente, sem queimar ou ranger os dentes, e me ponho a boiar sobre a insinuação da superfície.

 

Bebo da água quando quero, 

mergulho e retorno vez ou outra.

 Tem dias que desespero; 

noutros não tomo uma gota. 


 Não me furto a dizer que há noites que piro

E ainda que por demais encharcado, 

respiro.



quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Tu

 A quem chega teus pensamentos frívolos de manhã qualquer? O primeiro olhar que lança ao espelho de um dia gordo é só teu. O último também. A picada ardente de mosquito no mindinho da mão esquerda e a boca do moço que achou atraente no ponto de ônibus. O percurso da tua viagem ao trabalho e o que reparou ao longo das avenidas. O calor e o cansaço. A parte do teu corpo por onde o suor mais escorre e aquela lembrança de outro dia - que da forma como vem a ti, só existe assim: em ti. Aquela mania, umas duas fobias, o chão sujo do teu quarto, e a real sensação daquela alegria. O incômodo com tua barriga, o teu perfume de sempre, teu pesar não dito e a autoestima anunciada em teu sorriso imperfeito. Teu desenho mal feito. Tua voz embargada. O mais obscuro pensamento e ambição incubada. Quem saberás dizer de ti melhor que teu peito? Nem o tempo de uma vida inteira, nem amor ou amizade perene. Antes de se estender e desabrochar em braços de outras relações, é contigo mesmo que o mundo conversa. É na solidão do teu cerne que ele nasce e desperta.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Boa noite

 Por que não sobre isso aqui? Estou tentando dormir faz duas horas. Por que não sobre isso aqui? Que verão atípico, esse, Rio de Janeiro. E que livros empoeirados aqueles ali. Até que fiz bastante coisa hoje, mas ainda preciso terminar o texto pra aula de amanhã. E essa fresta na caixa do ar condicionado? Barata, aranha, lagartixa... Melhor nem pensar. Preciso pôr essa cortina pra lavar - talvez os espirros sejam por causa disso. Eita, as roupas na máquina. Coloquei a comida na geladeira? Tô ficando com fome de novo. Por que não sobre isso aqui? Preciso decidir o que fazer no meu aniversário... Embora eu sinta que essa é uma pressão muito mais externa do que interna. Que chato ter que organizar e decidir qualquer coisa porque nasci dia tal e ele se aproxima - ao mesmo tempo, que delícia ter vários amores reunidos. Nossa, já vou fazer vinte e sete - o dobro disso já é cinquenta e quatro. Me sinto um adolescente às vezes. Por que não sobre isso aqui? Amanhã minha primeira aula é às sete, acho que vou de uber pra poder dormir um pouco mais. Tenho que parar de gastar tanto com uber. Mas gasto tanto com besteira... Conforto pra ir à faculdade podia ser prioridade. Ou esse sou eu tentando redimir minha preguiça matinal apenas. Acho que vou tomar outro banho; banho gelado talvez me desperte ainda mais. Mas banho quente nesse calor? Por que não sobre isso aqui? Queria levantar pra ver o céu da janela da sala. Preciso controlar essa vontade de comer doce. Faz um tempo que não visito minha avó; esse fim de semana eu vou sem falta. Será que minha tia tá bem? Vou mandar mensagem. Saudade de minha mãe. Vou rezar. Por que não sobre isso aqui? Quem é o louco que buzina uma hora dessa? Meu Deus, as pessoas. Meus Deus, O Brasil. Os canalhas, os golpistas. Por que não sobre isso aqui? Vai dormir, porra! Vai dormir.