quarta-feira, 20 de março de 2019

Carnaval


O carnaval passou e desorganizou um pouco nossa desordem. Veio girando feito um furacão bêbado e encontrou a gente no meio da rua com uns copos nas mãos. Nos sugou aos ares, lançou aos ventos, às músicas, aos amigos e a uns venenos de adulto. Atiçou, eletrificou e nos tirou pra dançar sem muito direito a descansos. Os pés cansados e fortes, o corpo quase sempre suado e a bebida gelada. E as pessoas com a gente, as pessoas pra gente, e a gente com e para elas. A rua pra gente, o canto da gente e o dos outros também.

Dentro dos ventos fortes e coloridos dessa ventania, a gente se pintou de azul, rosa, prateado e verde florescente. A gente se enrolou em arco-íris e brilhamos sob sol, chuva e lua. A gente comeu e bebeu na rua, dançou e descansou na rua, beijou e se abraçou na rua, militou e resistiu na rua. Nossos corpos, vozes e presenças ecoaram espectros de luz e incendiaram e acenderam espaços, encantaram pessoas boas e se encantaram com elas.

E a nossa casa é que esperasse o furacão nos soltar. Não é todo dia que se está coberto de glitter comendo numa lanchonete com amigos. Não é todo dia que se sai às ruas sem saber ao certo pra onde, tendo a certeza de que vai achar uma coisa boa por aí. Não é todo dia que o boçal do nosso presidente é afrontado, de diversas maneiras e por diversas pessoas, das formas mais maravilhosas e criativas possíveis.

E pra não dizer que não falei das coisas ruins... Faz de conta que falei. Ou então dá uma olhada em qualquer noticiário de hoje, de ontem, de uns meses ou uns anos atrás. Tá tudo lá. Os chamados “males que o carnaval traz” não são trazidos pelo Carnaval propriamente dito, ou pelo menos não têm muito a ver com ele. Ele só chega e expõe algumas coisas que na verdade já acontecem há muito tempo. E a falta de educação de algumas pessoas cabe aqui como melhor exemplo.

Ninguém deve temer o Carnaval, como infelizmente tem acontecido. Ninguém deve temer sair na rua e encontrar pessoas cantando e dançando, e cantar e dançar também se quiser. Sair de casa e olhar para os outros com um olhar de cuidado já é resistência em 2019. Já é uma força contra aqueles que agem de forma contrária. Precisamos ser maiores e precisamos ser mais. E fazer lembrar que carnaval é alegria, história, cultura, música, amizade, energia e amor. Claro: A forma como cada um vai receber e passar isso é uma escolha absolutamente individual. Carnaval é essa ideia maravilhosa e quem põe em prática é você.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Túnel


Voltar pelo caminho de mim e me recolher as partes, os estilhaços, os membros espalhados de mim mesmo. Olhar para trás e ir até lá. Se aproximar com cuidado, mas sem medo, e entender a cara de todas as minhas mortes. Refazer uns pontos em mim e chorar o que não chorei, falar o que não falei e apreender o que me foi negado. De pés calmos, caminhar sem pressa pelos meus túneis e resgatar os prisioneiros que escondi, e que depois se esconderam de mim.

Colocar tudo em seu devido lugar. Ou tentar. Revisitar os porões que ficaram abertos, entender porque algumas luzes se apagaram e acendê-las quando for preciso. Tatear no escuro e achar umas chaves que estavam lá o tempo todo.  E ir abrindo algumas portas então, ferrolhos de ferro, sistemas elétricos, e encantar uns cães raivosos. Ir liberando alguns sinais, algumas trancas e algemas. Fazer as coisas acontecerem, fazer a água rolar e meu trânsito fluir.

Voltar em mim pra me fazer acontecer, pra ressuscitar o bom que tenho ou tinha. Ressuscitar o bom de mim e agregar ao melhor que tenho agora, e sair andando e gritar pra fora. Gritar pra fora minhas velhas novas partes, meus redescobrimentos de mim. E seguir em frente e esquecer também umas partes pelo caminho futuro, e perder outros membros e aprender um pouco mais, coletar outras coisas e passear por outros bosques, por outros pântanos, por outras trilhas de mim. 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Tudo

Essa coisa viva que não existe por si só
Esse espelho difuso que te deixa escolher o que enxergar
O céu de qualquer dia esperando o teu olhar 
E palavras ordinárias recebendo a magia de qualquer um

A solidão do sol, a solidão da lua e a tua
Teu riso fotografado e teu choro escondido
Os livros lembrados e os esquecidos
Tua casa
Tua rua
E todas as outras casas e ruas

Os sons, os ares, os mares e os bichos
Teu café da manhã de todo dia
A luz amarela que beija tua janela
E até a louça que esqueces na pia

Mesmo que não queira
Mesmo que não saiba
Ou ainda que esqueça
Tudo isso também poesia.






quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Furacão


A ansiedade escorre pelos meus dedos e eu os lambo diariamente. Esfrego o rosto, bato os pés, mordo objetos e respiro fundo, e bebo muito, e como tudo. Porque eu tenho planos, contas e um corpo para cuidar, porque eu tenho jogado tudo isso no lixo, tenho me chutado pra baixo da cama e pra fora de casa.

Porque há coisas que nos pesam os ombros, nos pressionam contra a parede e apertam nosso peito. E a gente gira feito furacão pra longe, tentando esquecer, tentando não ver, não querendo engolir, não querendo sentir. E eu tenho girado em excesso e de braços abertos, tenho arrastado tudo comigo, tenho desolado pedaços importantes de mim.

Só fecho os olhos e vou pra rua, saio à noite e encho a cara. Me junto com amigos para não pensar e ter uma trégua de mim. Às vezes consigo. Vou à praia e mergulho como se tudo fosse mudar entre a imersão e a emersão. Nada. Mas pelo menos ali a realidade é enfeitada. Enfeites esses que sempre procuro, porque me melhoram e às vezes ajudam a me manter girando... O sol, a lua, o ar da noite e a calma da tarde. E também as paredes das ruas, os ângulos dos meus olhares e as músicas que canto.

Preciso parar. Preciso relaxar e dormir. A casa tá uma zona e eu tenho cochilado no meio dos meus escombros. Aqui os enfeites nem ficam tão bonitos assim e se tornaram remédios, em vez de um suco saboroso que acompanha um dia bom. Eu vou parar. Eu tenho que parar. Parar e depois caminhar, e olhar, e ver. Respirar e encarar tudo de frente, abrir o peito e deixar a cara livre para os tapas, para as lições. Preciso mastigar em vez de engolir de uma vez. Ler em vez de folear. Chorar em vez de correr. E nadar. Em vez de me debater.