sexta-feira, 31 de março de 2023

Caligrafia

Me perdi por umas linhas dessa escrita que não tem volta. Me peguei preso num parágrafo inicial quando todos pareciam já estar caminhando para um desenvolvimento conclusivo. Disponho as palavras ao longo do misterioso quadro negro que me foi dado de presente, com giz permanente - não usufruo do luxo de poder voltar atrás, de desfazer, de apagar. Mas ainda posso sublinhar, acrescentar umas vírgulas no verso acima, reler a estrofe anterior, contornar umas letras, fazer de um P, um B. Me esforço para desenhar cada letra sinuosamente, com a cautela de quem gostou demais do presente, mas que, não raro, rasga o pacote em vez de desatar o laço. Pois é, a letra de professor sede lugar a um garrancho de médico em algumas passagens. E os fins nem sempre justificam os meios nesse caso; a ilegibilidade dessas prescrições podem causar um mal ferrenho à saúde. Saúde essa que, verso após verso, tenho dado mais valor, porque me conheço melhor agora, escrevo-leio minha história, e é ela mesma que me ensina como continuar a contá-la. Já aprendi que páginas em branco, algum dia, deixam de surgir... E a não ser que quebremos o quadro ou joguemos o caderno fora, o que nos une é exatamente isso, a única opção que temos enquanto seres que respiram e querem respirar: escrever.


sábado, 25 de março de 2023

Moeda

 O que assisto daqui, de meu claustro um tanto quanto abafado e de paredes cruas, é o que a mente me conta. E que por vezes sussurra ou berra; não há horário apropriado para uma coisa ou outra. Sussurros ao escrever um texto ou me concentrar numa leitura. Berros ao tentar pegar no sono ou ouvir música alta. Meus ecos me fazem companhia e me levam a revisitar festas, trilhas, risadas e cachoeiras; casas de amigos, ruas cheias, sol na pele e vento na cara. E mesmo estes, ecos vibrantes e outrora clementes, me empurram aos possíveis obscurantismos de um devir latente. Me enfiam dúvidas e medos goela a baixo e me mostram o outro lado da moeda da vida. As contas e o supermercado, a louça que se retroalimenta na pia, meu pai doente, a tomografia. Pessoas passando fome na porta da padaria. E seguimos tentando... Assim: no cara-coroa de todo dia.