quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Mar negro

Às vezes surge na tarde aquela vontade de pegar um corpo qualquer e o pôr a me ouvir. E com admirável eloquência vomitar o que carrego dentro de mim, o que carrego na mente e no peito, o que não aceito, o que não tem jeito. Falar das ondas escuras que às vezes assolam os dias... Aquelas que voltam com força, que não se anunciam, simplesmente crescem e te engolem. Que veem, que vão. Que chegam, que partem. Porque na verdade é disso que se trata tudo isso aqui. Ciclos, fases, repetições, e a nossa resistência, e a nossa luta, e o nosso gozo.

Seria eu o resmungão do século então? Longe de mim. Discursaria também sobre as gostosas calmarias, sobre os leitos tranquilos que dormem sob nossas estrelas longíquas e sobre nossos momentos de ascensão e flutuação sobre águas cristalinas. Sou extremamente grato às tréguas que esse mar nos dá, sou grato aos que estendem as mãos em tempos de ressaca e à beleza que cai sobre a praia, nos dias em que tsunamis são apenas distantes lembranças.

Falaria, por fim, de meu real desejo: que sempre retornemos incansáveis à superfície, sem jamais nos deslumbrarmos pela beleza feia de uma profundeza qualquer.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Devaneio-me

Meu coração palpita, pedindo mais. Sinto um frio percorrer todo meu dorso e baldes de gelo são despejados em minha nuca e abaixo de meu diafragma. Um frio que antecede uma sede por calor. Sede com fúria, sede com dor. Porque essa coisa pulando dentro de mim não está satisfeita com mera quentura viscosa e avermelhada. Porque basta a noite ganhar corpo que ele tem fome, ele tem sede, ele convulsiona de desejo.

Eu vou sair pra perambular pelas ruas então, e vagar meu espírito por lugares sagrados, por lugares sedentos, lugares sangrentos. Lugares que avistam o sol antes dos olhos bêbados da manhã, e lugares onde o vento não faz visita. Quero caminhar sem pressa, de modo a alimentar aos poucos essa minha vontade de comer o mundo. Ah, o mundo... O mundo e seus pedaços desgostosos, pedaços insossos e sebentos. Pedaços que estão prestes a apodrecer na geladeira, aqueles restos que lambemos diariamente.

Mas não, não quero. Vou me virar em centenas de esquinas e admirar casas de ruas escondidas, os postes e as paredes sujas. Redesenharei algumas construções, pra que se encaixem melhor em meus sonhos embaçados. Meus pés brincarão com cada deformidade do chão quente, e o descreverão tão bem quanto minhas narinas descreverão a densidade dos ares urbanos, o odor das sarjetas e algumas fragrâncias bucólicas.

Minha língua, mais luxuriosa do que nunca, vai sentir o gosto de outras muitas, e também o de verdes desconhecidos e o de cores não imaginadas. Minha pele, por sua vez, será nada hermética. Um convidativo lenço protetor de toda uma fartura almática, a porta de um estoque de rútilos e sombras disponíveis a mim. Disponíveis a quem alcançá-los. Meu coração, por fim, baterá mais forte e mais saudável, bombeando tudo pra fora, tudo com vontade, tudo com amor.