quarta-feira, 16 de março de 2016

Combustão

 Acorda no susto e pula, e corre, e perambula entre uns móveis traiçoeiros. O rosto seco e amassado, como saco plástico que fora diminuído a nada e depois fora tomado por ar. Os pés descalços e as mãos agitadas, tateando as paredes do corredor pouco iluminado. Toma um banho chato, escova os dentes logo, põe a roupa rápido e mastiga algo trivial e engole. E corre, e volta pra buscar as chaves. Desce as escadas com pés afoitos, esquecendo-se de diversos degraus, e faz a mão passear pelo bolso, procurando uns trocados sujos para a tarifa do ônibus. Que caro esse ônibus! E ele não espera, ele às vezes nem para, nem te olha, ou olha na tua cara e vai embora. Quando te acolhe, não raro é num calor abrasante, te pega nos braços e queima teus miolos, te escorre roupa a baixo, te sacode num ritmo apressado. Tu em pé, eles em pé, o suor em tua testa, o suor na testa deles, oitenta quilômetros por hora lhes comendo vivos.


Está tudo muito quente em tua vida. Tua cidade, teu bairro, tuas ruas e calçadas, tua cozinha e tua cabeça. Até a água do chuveiro elétrico desligado, por vezes, te escalda, fere tua pele e te contorce a face. O sol emana um fogo que te afoga, que te cansa, e a sombra já não te cura mais de nada. Porque toda essa fúria dos dias cálidos não esfacelam tuas angústias e teus desgostos como esfacelam a ti. As labaredas da rua não queimam a lenha que os desgastes dos dias produziram, não queimam tuas tarefas enfadonhas, não queimam tuas contas com o diabo, tampouco queimam teus desejos ambiciosos.


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