terça-feira, 1 de maio de 2018

Notívago

Dia desses, vi andando por aqui um gato de olhar confuso e nada efusivo. Um gato que se ajeita numas sombras diurnas e se esparrama na imensidão dessas noites pequenas. Que parece saber que a serenidade das tardes merece todo nosso apreço e que as manhãs também precisam ser vividas.

E tá por aqui ainda, o gato, aqui por dentro... Numa luta contra o tempo, o tempo dele, o tempo do qual ele acha que tem o mínimo de controle e entendimento. O tempo que às vezes o sufoca, e que às vezes o faz querer caminhar. Constante, claro, alguns arrastar de horas pelo dia, rolando sobre algumas coisas, dormindo em cima de outras muitas, tendo umas ideias frescas e outras vagabundas.

Em noites lindas e atípicas, por algum motivo, sob céu limpo ele se senta a conversar comigo e me sussurra as profundezas do peito. Diz já não querer se perder no tempo, que quer buscar equilíbrio entre instinto e racionalidade. Quer o intermédio entre ar e vento. Quer se encontrar de verdade. E também viver de luz e de caminhadas acesas pela manhã, farejar muitos ares, pra só então decidir qual deles vai ser seu combustível fiel até a morte.

E até algumas decisões sangrentas serem tomadas, até esses nós sem olhos serem desatados e umas promessas cumpridas, o lado incansavelmente recluso de seu ser se fará assiduamente presente. Calado. Afastado. Bate o rabo. Se vira.

E tá por aqui ainda, o gato. Aqui por dentro... 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Cara


  Um cara chamado Vício chegou a mim sorrateiramente, um dia aí, semana qualquer, nem lembro. E foi eu virar as costas que ele tomou conta da minha sala, abriu a porta do quarto, puxou meu tapete e deitou na minha cama. Não demorou muito pra estar sentado bem no meio da janela, me impedindo de ver além, de ver o horizonte.
   Então eu deitei e rolei nuns prazeres fugazes quase diários, peguei esse cara e tranquei na minha casa, botei na minha vida, fodi enlouquecidamente com ele. Na cama, no chão, de tarde, de noite, na rua e em casa, na Sexta e na Segunda. Vivíamos extasiados pelos cantos das manhãs pouco dormidas e pela quentura das noites abertas.
  Em algumas madrugadas até andamos algemados um ao outro, com bocas suculentas, tamanho era o prazer... Prazer esse, a única coisa que eu cobrava dele. E em troca ele tinha minhas horas, e meu fígado, e veias, e sangue, e o controle remoto de mim. Ele tinha meu horizonte escondido atrás dele, pois insistia em se sentar com deliberada frequência na porra daquela janela...

  Escrevo agora de uns degraus mais elevados do morro da lucidez, porque a paixão se foi. O gozo já não é o mesmo e a casa precisa se abrir de novo. Precisa de outros ares e de outro tipo de luz. A paixão se foi e eu já nem quero me deitar naquela cama, não quero dividir o travesseiro, não quero nem resquício daquele cheiro.
   Mas o cara ainda me olha. Desfila nu sob meus olhos. Discute, grita, esperneia, e ainda tenta fazer barreira na janela. Eu, melhor agora, tenho saído pela porta que arrombei e passado uns dias fora. Ouvi sobre uns projetos recentes dele, que quer se mudar, conhecer outra cidade, assombrar outro lar.
   Para o bem desse novo caminho, de minha abstenção reflexiva brotaram novas flores e novas armas. Então, lhe deixei um bilhete grudado à geladeira: "Tua passagem já tá comprada, cara. Não sei ao certo para quando ou para onde mas, ou você para de se pendurar nas cortinas e deixar a casa às sombras, ou vamos juntos, com tudo, voar sacada a baixo."