É você, Morte?
Eu juro que sou
inocente, garota.
Não a culpo. Eu quis
vir visitá-la. Até que sua casa não é tão distante da casa da Vida.
A Vida é maravilhosa,
não é mesmo? Que cor de vestido usavas hoje?
Cinza. Bom, pra mim não
estava maravilhosa. Você a conhece?
Claro, menina. Eu e a Vida só andamos juntas. Vamos a todos os lugares juntas. Ao supermercado, à casa da vó, à escola, à boate, à praia, à orgia, à mesa de cirurgia. Sempre lado a lado.
E como nunca te vi?
A Vida diz que eu
costumo assustar, então só apareço quando ela permite. Aliás, ela
sabe que estás aqui?
Sabe sim, ela assistiu
minha saída e não tentou impedi-la. Mas e você, como vai sua
vida, Morte? Tem filhos? Marido? Você faz o que da vida?
“Você faz o que das
vidas?” seria mais apropriado. Mas ainda assim estaria errado. Vivo num grande vazio escuro brincando com ossos. Sou uma grande despensa de restos. Tu ficarás em
mim. E teu pai também. E Tua mãe, teus cachorros, teu presidente, teu inimigo, os recém-nascidos, as freiras, as putas. Todos. Tua alma me escapa e leva teu coração. Mas jamais abrirei mão
de um jantar com direito à olhos, fígado e suculentos intestinos. Não mesmo.
Meus filhos são os vermes. O pai é a terra.
Você é amiga da Vida?
Não muito. Ela é egoísta, só me dá as partes mortas dela. E eu sou igualitária, veja, estou nua e suja como tu. Agora deixemos de tanta boca aberta e entremos.
Nossa, tá escuro aqui... E sua casa fede. Espera! Quem sou eu? Qual meu nome? Me sinto tão
vazia...
Tua alma ficou lá fora, menina. Se olhares pela janela talvez ainda a vejas. Converso com teu corpo. Tu já não existes.
Tua alma ficou lá fora, menina. Se olhares pela janela talvez ainda a vejas. Converso com teu corpo. Tu já não existes.
Existo sim. Existo sim.
Existes não. Não passas de morta. Desalmada. Estás gelada. Não lembras. Não sentes. És oca e só.
Deita-te e aguarda por meus filhos. Eu preciso atender a porta.