quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Cara


  Um cara chamado Vício chegou a mim sorrateiramente, um dia aí, semana qualquer, nem lembro. E foi eu virar as costas que ele tomou conta da minha sala, abriu a porta do quarto, puxou meu tapete e deitou na minha cama. Não demorou muito pra estar sentado bem no meio da janela, me impedindo de ver além, de ver o horizonte.
   Então eu deitei e rolei nuns prazeres fugazes quase diários, peguei esse cara e tranquei na minha casa, botei na minha vida, fodi enlouquecidamente com ele. Na cama, no chão, de tarde, de noite, na rua e em casa, na Sexta e na Segunda. Vivíamos extasiados pelos cantos das manhãs pouco dormidas e pela quentura das noites abertas.
  Em algumas madrugadas até andamos algemados um ao outro, com bocas suculentas, tamanho era o prazer... Prazer esse, a única coisa que eu cobrava dele. E em troca ele tinha minhas horas, e meu fígado, e veias, e sangue, e o controle remoto de mim. Ele tinha meu horizonte escondido atrás dele, pois insistia em se sentar com deliberada frequência na porra daquela janela...

  Escrevo agora de uns degraus mais elevados do morro da lucidez, porque a paixão se foi. O gozo já não é o mesmo e a casa precisa se abrir de novo. Precisa de outros ares e de outro tipo de luz. A paixão se foi e eu já nem quero me deitar naquela cama, não quero dividir o travesseiro, não quero nem resquício daquele cheiro.
   Mas o cara ainda me olha. Desfila nu sob meus olhos. Discute, grita, esperneia, e ainda tenta fazer barreira na janela. Eu, melhor agora, tenho saído pela porta que arrombei e passado uns dias fora. Ouvi sobre uns projetos recentes dele, que quer se mudar, conhecer outra cidade, assombrar outro lar.
   Para o bem desse novo caminho, de minha abstenção reflexiva brotaram novas flores e novas armas. Então, lhe deixei um bilhete grudado à geladeira: "Tua passagem já tá comprada, cara. Não sei ao certo para quando ou para onde mas, ou você para de se pendurar nas cortinas e deixar a casa às sombras, ou vamos juntos, com tudo, voar sacada a baixo."